Ecoísmo e Narcisismo numa visão bioenergética
- Luiza Revoredo
- 16 de ago. de 2016
- 18 min de leitura

Este artigo se propõe a uma breve revisão do uso do termo narcisismo na teoria da Análise Bioenergética e aborda a dinâmica ecoísta, descrita por Byington (2003) e Montellano (1996 e 2006), referência à Eco, outra personagem central no mito de Narciso.
Sustento o duplo olhar para Eco e Narciso, personagens complementares ao se fecharem no outro ou no eu. Foco as possibilidades defensivas e também criativas de Eco ao ressoar os espaços vazios onde há vida a ser des-coberta, e em Narciso o valor da introspecção na medida boa o bastante para a transformação que o mundo e a Vida insistem em nos exigir, a acolhida do estranho dentro e fora de nós.
Há mais ou menos 10 anos atrás uma paciente iniciou sua sessão de psicoterapia com a cena de um sonho. Ela me disse: Luiza, fiquei em contato a semana inteira com uma cena de um sonho; não lembro mais nada, mas a imagem se apresenta todo o tempo. Sonhei com uma amiga que era como uma planta, ela e planta se misturavam, parecia escondida e ao mesmo tempo parecia planta.
Perguntei seu sentimento frente a esta imagem e ela me disse: estranheza, mas o fato é que não me abandona.
Perguntei quem era a amiga: uma colega de profissão, moça que veio de um nível bastante precário sócio-cultural e que tem muita garra, é uma vitoriosa. Estive com ela numa reunião profissional e me confesso envergonhada com o jeito exibido que identifico nela. É tudo verdadeiro, mas é também muito exibido, muito “eu fiz, eu consegui, a minha empresa...”
Pedi então que me desenhasse a cena, este era um recurso desta paciente, e vi algo mais ou menos assim:
Olhamos juntas e ela mesma viu e nomeou a camuflagem. Perguntei-lhe: para que alguém se camufla assim? Ela disse: para a sobrevivência.
A partir desta sessão iniciamos a elaboração do seu narcisismo oculto, seus esconderijos, seus disfarces; o quanto de energia investia nesta defesa, a forma como esta defesa estava estruturada no seu comportamento e no seu corpo; o lugar sombrio, os bastidores que ocupava nas diversas relações, seu lado ECO, associação imediata que fiz à personagem do mito de Narciso.
Assim iniciei minha pesquisa neste tema, Ecoísmo e Narcisismo, a partir do meu olhar de analista bioenergética.
Narciso não gosta do que não é espelho, diz o poeta-cantor. E nós, o que gostamos e aceitamos em nós mesmos e nos outros? Como cada um se relaciona com o espelho? Enamora-se? Evita? Horroriza-se? Busca moldar-se segundo o que quer ou a cultura quer?
É fato que, se Narcisos, continuamos a nos apaixonar pelas nossas imagens e semelhanças e se não vivenciamos a mesma condição econômica, religiosa, cultural, facilmente excluímos e atacamos. No mundo contemporâneo, entre outras tantas proteções, nos fechamos com “os nossos” nos condomínios murados; abrimos mão dos espaços públicos, que cada vez mais vão assim se deteriorando e ficam habitados por estes outros, diferentes que tememos e evitamos.
Sempre em busca dos iguais, tribos e países se lançam às terríveis guerras. A decorrência? Excluímos, matamos, nos suicidamos e ampliamos ainda mais nossa sombra individual e coletiva.
Reich nos diria que o mundo contemporâneo, ainda e mais, favorece a construção de tipos narcisistas em graus e formas variadas para a sua manutenção.
Este tema, Narcisismo, insiste em ser atual, pelo hipervinvestimento no espaço privado e nos remete tanto ao contato consigo próprio, quanto com o outro. Diz respeito às parcerias, ao trabalho, aos casamentos, à aprendizagem, à psicoterapia, à cultura, enfim a todo convívio íntimo e projeto de vida.
Alexander Lowen discorre brilhantemente sobre este tema no seu livro Narcisismo: a negação do verdadeiro Self (1983). Aborda o narcisismo como uma condição psicológica individual: indivíduos que conheceram o horror da traição e do uso. O horror, Lowen nos diz, promove aquela sensação de “eu não acredito no que estou vendo”, atordoamento, a cena que se repete mil vezes na cabeça em busca de uma compreensão que não encontra. O que é visto é inacreditável, torna-se a base da descrença nos próprios sentimentos, leva à desconexão cabeça-corpo. Vivem um vazio existencial incomensurável e uma construção com base na negação dos sentimentos, investindo numa imagem de si, às custas do seu Self.
Para sair do vazio, podemos dizer que estes indivíduos buscam as sensações que se dão através do movimento nos corpos, recorrendo às múltiplas possibilidades que o mundo contemporâneo oferece para suposta excitação e prazer, os excessos de toda ordem, como drogas, festas raves, e aí paradoxalmente se anestesiam novamente com outras drogas, medicação e práticas corporais compulsivas, porque não dão conta de sentir. Este é o círculo vicioso em que vivem.
Como condição cultural, Lowen nos diz que a negação dos sentimentos levou à precariedade dos vínculos e à promoção de um estilo de vida cada vez mais privado. O narcisismo aparece na perda dos valores que nos permitem dizer humanos, como ternura, compaixão e solidariedade, na ausência de interesse pelo outro e pelo meio ambiente. Existe um grau de irrealidade e insanidade numa cultura que coloca a ambição e o êxito pessoal acima da necessidade de amar e ser amado.
E acrescenta, quando se refere à psicoterapia destes pacientes: “Se a abordagem for psicológica, eles usarão a racionalidade para bloquear uma apreciação de seu problema. Se for física, isto é, trabalho corporal, eles passarão pelo movimento como se tivessem sentimentos e depois negarão qualquer sentimento ou sentido à experiência corporal...O terapeuta deve usar as duas abordagens com sua melhor habilidade. Na verdade, nenhuma terapia depende da abordagem do problema. O agente importante de toda terapia é o terapeuta...A irrealidade do paciente precisa ser confrontada pela realidade do sentimento humano do terapeuta, e essa confrontação pode pôr em movimento as forças pela saúde do paciente...O terapeuta precisa ser na realidade um humano real, isto é, alguém que tem sentimento pela vida.” (1972)
Na teoria da Análise Bioenergética Lowen define um espectro do distúrbio narcisista, uma gradação de cinco tipos em função do nível de identificação do indivíduo com seus sentimentos, base do Self. Quanto mais narcisista, menos identificado está com seus próprios sentimentos, criando uma imagem discrepante do que é de fato. Então, temos em ordem crescente: caráter fálico-narcisista, caráter narcisista, personalidade de fronteira, personalidade psicopática e personalidade paranóide.
Até aqui temos o termo narcisismo utilizado para definir estruturas de caráter e personalidade, mas encontramos também sua utilização em pelo menos estes outros contextos na teoria da análise bioenergética:
1.referido ao aparato defensivo, como sendo um sistema de proteção narcísico;
2.ligado à concentração de energia para dentro de si;
3.como adjetivo, por ex. estar mais ou menos narcisado;
4.ligado à auto-estima, desde sentimentos de inferioridade até a grandiosidade;
5. como ferida narcísica, uma marca deixada por relações e fatos significativos;
6.ligado à escolha de objeto.
Contemplando estes sentidos, temos elementos narcisistas em todas as estruturas de personalidade, o que também justifica continuarmos tessituras neste tema.
Como sabemos, o termo narcisismo deriva do mito grego Narciso, e Lowen ao elaborar este tema toma como ponto central a famosa cena de Narciso na fonte, seu apaixonamento pela própria imagem e morte.
Entretanto, busco neste mito outro personagem, também central, Eco, donde deriva o termo ecoísmo. Para este propósito dialogo com dois analistas junguianos, Raquel Montellano e Carlos Byignton, que abordam Narciso e Eco como tipos complementares de concentração de energia no eu e no objeto, sendo manifestações de um mesmo processo subjacente.
Byignton descreve os aspectos criativos e defensivos na estruturação de cada uma destas funções, ecoar e narcisar, o que permite fazer uma leitura destes aspectos desde a normalidade até a psicose e afirma: Se Narciso é um símbolo central de permanência em si mesmo, Eco, ao contrário, traduz a problemática da vivência de permanência no outro. Montellano acresenta: A disfunção do ecoísmo é tão importante na clínica quanto a do narcisismo.
Trabalho a complementaridade destes 2 personagens, não só masculino e feminino, mas sobretudo algo que permanece em si mesmo e algo que permanece no outro, elaborando bioenergeticamente as possibilidades pulsáteis, ecoar e narcisar, e contraídas ecoísmo e narcisismo.
A partir daí convido para refletirmos alguns desdobramentos advindos desta difícil e instigante tarefa de relacionamento com si próprio e com o outro, utilizando estes elementos como operadores para a clínica individual, de casal, no ensino e na formação de psicoterapeutas corporais.
O mito de Narciso, na versão de Ovídio, poeta latino (Brandão, 1991):
Narciso é filho do rio Céfiso, que significa o que banha, inunda, e da sardenta ninfa Liríope, que parece significar voz macia como lírio.
Liríope foi vítima da insaciável energia sexual de Céfiso, em cujas margens tranquilas ninfa alguma poderia passear incólume. Teve uma gravidez penosa e indesejável, mas um parto jubiloso e ao mesmo tempo motivo de apreensão, pois não era concebível um menino tão belo.
Na cultura grega a beleza fora do comum sempre assustava, porque facilmente arrastava o mortal a cometer a hibris, o descomedimento. Competir com os deuses em beleza era uma afronta inexoravelmente punida, e a deusa da justiça, Nemesis, estava a postos.
Beleza assim nunca vista realmente conturbava o espírito de Liríope. Quantos anos viveria o mais belo dos mortais? O temor levou-a a consultar o velho sábio Tirésias, aquele mesmo do mito de Édipo.
Narciso viveria quantos anos? Enquanto ele não se vir.
E grandes paixões de jovens de toda a Grécia começaram, todos irremediavelmente presos à beleza do jovem, que, no entanto, permanecia insensível. Entre os apaixonados estava Eco, a ninfa que o seguia sem que ele a visse.
Aí temos a famosa cena da fonte do rio Téspias, onde Narciso rejeita Eco que envergonhada se esconde nos arbustos e definha até morrer, e ele, sofrendo a punição rogada por outras ninfas à deusa da justiça, acaba apaixonado pela própria imagem refletida na fonte e morre. No lugar da sua morte nasce a flor narciso.
Este mito contempla vários temas presentes nas estruturas narcísicas: competição, poder, ocupação de um lugar equivocado na estrutura familiar, questão de limites, inundação de sentimentos, violência, abuso sexual, ingenuidade, visão, intuição, dependências, aderência ao outro e drogadicção, repetição compulsiva, relação com a imagem, falta de contato com o corpo, insensibilidade, desprezo, reflexão patológica, vergonha, humilhação, depressão, anorexia, desespero, suicídio, senso de justiça, relação com o tempo, apaixonamento, distância boa o bastante nas relações, ressonância, necessidade do encontro consigo e com o outro...
Quem é Eco?
Eco é uma ninfa das montanhas e florestas, do séquito de Hera, a esposa de Zeus, o grande deus do Olimpo. Zeus incumbiu Eco de distrair Hera com suas tagarelices, enquanto ele saía para povoar o mundo. Hera, a protetora das instituições, e portanto do casamento, como sempre bastante desconfiada e enciumada, deu-se conta do que estava ocorrendo e puniu Eco retirando-lhe seu dom mais precioso, a fala, assim ela nunca mais seria capaz de enganar alguém. Hera condenou Eco a reproduzir as últimas palavras de qualquer outro.
Com esta punição Eco fica fixada numa fase anterior do desenvolvimento, a fase da ecolalia, onde a criança começa a se abrir para os sons do meio ambiente, ainda indiferenciados. Eco não pode iniciar uma conversa, não consegue se comunicar, portanto fica impedida de acessar ao outro pela palavra, impedida de dialogar. Pior do que isto, ela tampouco pode ficar em silêncio. É duplamente punida, pela aderência ao outro e pela repetição, sem criação e sem quietude. Torna-se dependente e submissa. Sem a possibilidade relacional que a palavra dá, Eco tem seu processo de humanização comprometido.
Eco fica aprisionada ao casal parental, falta-lhe grounding materno, “não tem” pernas, nem voz própria. Assume uma cumplicidade com o pai, que a coloca no lugar da mediadora do casal e, assim, nunca se diferencia na sua autonomia. Nesta aliança com o pai paga o preço do seu feminino.
Sua problemática inclui triangulação familiar, limites mal colocados e problemas com autoridade. Diluem-se as barreiras geracionais, desaparecendo limites que possam proteger a criança e lhe assegurar espaço para construção da sua individualidade.
O elemento mais significativo é que ao perceber que seus sentimentos têm pouco valor passa a negá-los e a projetá-los no outro, tornando-se excessivamente sensível e plástica ao outro, podendo criar uma compulsão de cuidar do outro, pois é dependente dele para obter reconhecimento.
Observa-se um deslocamento de um traço da oralidade, a dependência e a tagarelice, a fala sem medida que visa capturar o outro, para uma defesa masoquista, assim definida na caracterologia loweniana. A ferida narcísica de Eco não é visível, é protegida pela dedicação e ressonância ao outro.
Um aspecto interessante é que no mito consta que Eco rejeitou a Pan, o deus dos bosques e das pradarias, o que pode ser visto como uma pressão em direção ao seu desenvolvimento, pois Pan também é indiferenciado. Eco precisa de diferenciação, e ao rejeitar Pan resiste a ecoar a tudo e a todos, pois ela não anseia a generalidade, ela deseja o singular, Eco deseja Narciso para ser contida.
Raquel Montellano (1996, 2006) define narcisismo-ecoísmo como funções polares que vão propiciar um investimento libidinal no eu e no outro, incluindo aspectos comportamentais, cognitivos e afetivos. Descreve a personalidade fixada numa dimensão ecoísta como apresentando excessiva dependência de amor e aceitação do outro, que sempre é bastante idealizado. Não consegue expressar seus sentimentos, especialmente a raiva, que projeta no outro e vive a culpa, chegando à depressão ou a condutas auto-agressivas. Bastante crítica e exigente, mostra-se tolerante e humilde, tendo aqui a dimensão do controle narcísico, o poder que exerce sobre os outros. Coloca-se sempre à disposição do outro e lamenta não ser reconhecida.
Esta é uma caracterização que se assemelha muito ao caráter masoquista na nomenclatura bioenergética. Porém a dinâmica ecoísta não se restringe ao caráter masoquista, ela se faz presentes em todos os que se centram mais no outro do que em si e que se tornam reflexo do outro, pode estar presente nos orais, nos rígidos, nos borderlines, nas histéricas.
Byignton nos diz que indivíduos com dominância narcisista representam o Yang, o agente, o que brilha, o foco de atenção, o que inova. E, indivíduos com dominância ecoísta representam o Ying, o incolor, o abnegado, não cria, repete e ecoa.
E cada um de nós, qual dominância vivenciamos, mais ecoístas ou mais narcisistas? Onde nos identificamos? E que parceiros escolhemos?
Desde Freud sabemos que pessoas narcisistas têm atração por aquelas que renunciaram a uma parte do seu narcisismo e vice-versa, o narcisismo de outra pessoa exerce grande atração para os que buscam reconhecimento.
Todos nós vivemos ou conhecemos relações onde um é o centro e o outro gira em torno deste centro, como um satélite na órbita do seu planeta.
Através destes dois personagens podemos aprofundar a leitura da dinâmica individual, da relação dos pares, dos casais, sócios, amigos, professor-aluno, psicoterapeuta-paciente, observando as fixações nas devidas funções e desdobrar aspectos que podem ser liberados dos padrões, reconstruir a pulsação e relações criativas. A clínica bioenergética se propõe a isto, a revitalizar zonas que perderam potência, sempre liberando a Vida.
Exercendo estes operadores na clínica de casais, podemos nos perguntar: Como lidar com a necessidade de autonomia, as necessidades individuais tão à venda na nossa cultura e ao mesmo tempo com a necessidade de companhia, reciprocidade e cumplicidade na vida a dois? São demandas contraditórias?
Quais sentidos estão presentes na busca de um parceiro? Os opostos se atraem? Dois bicudos não se beijam?
Costumamos amar no outro o que não reconhecemos como próprio, mas também odiamos o que não admitimos possuir. Uma escolha sempre contempla elementos inconscientes e aí vemos nas relações toda ordem de projeções e crises instaladas.
É neste resgate das projeções que residem possibilidades, fazendo-se necessário que cada um do par se abra para a outra polaridade em si, pondo-se em fluxo e assim contribuindo para que a relação também pulse, caso contrário se cronifica.
Se o individualismo prevalece o parceiro esquece a presença do outro como outro, mas se o ecoísmo prevalece, falta compromisso consigo.
Moral da história, cada um do par precisa desenvolver ambos aspectos em si, narcisar-se e ecoar.
Podemos também junto à caracterologia bioenergética, operar estes elementos na situação de ensino, observando a relação professor-aluno. Byignton, no seu livro Pedagogia simbólica: a construção amorosa do saber(2003), mais uma vez nos auxilia nesta tarefa. Professores de dominância narcisista tendem a concentrar o brilho em si próprio e muitas vezes projetam a polaridade ecoísta maciçamente em seus alunos, obrigando-os a desempenhá-la. Avaliam seus alunos em função de quanto eles o ecoaram e assim favorecem os copiadores ou repetidores, ainda que saibamos que repetir também cumpra uma função, mas não quando única forma.
Se estes ditos professores narcisistas têm de fato alunos na dominância ecoísta, podemos imaginar a “collusion” que ocorre, o “mar de rosas” nesta relação, o fluxo aparente, só que aí teremos a tormenta onde todos, professor e alunos, exacerbam sua polaridade. Por outro lado, se a dominância dos alunos é narcisista teremos instalado situações de rebeldia, tantas vezes de tão difícil manejo, ou aquela forma de submetimento a contragosto, que estanca qualquer processo criativo e prazeroso de aprendizagem. É a situação de ensino lamentavelmente colaborando para a construção de falsos-selves e tantos outros problemas no desenvolvimento dos alunos-cidadãos.
Se estes professores se abrirem à sua polaridade ecoísta, podem ser modelos interessantes, pelo brilho, ousadia e criatividade e instigar através da identificação.
Voltando-nos para o outro tipo de professor, aquele com dominância ecoísta, vemos a tendência a repetir o que recebeu e ser muito aberto à criatividade do aluno. São aqueles casos que quando exagerados se assemelham a discos gravados, os mesmo exemplos, as mesmas piadinhas, as mesmas máximas anos após anos, e desta forma patrocinam a cola e a decoreba, e claro, o desinteresse, o anedotário. Porém se abertos à sua criatividade, estes professores com dominância ecoísta podem se tornar presenças acolhedoras para seus alunos desenvolverem seu próprio potencial.
Observemos que a pulsação na própria função leva à conexão com a outra polaridade e é esta construção que permite ao professor ocupar seu lugar com competência e responsabilidade, deixando-se também aprender pelos seus alunos, na medida em que abre espaço para as singularidades destes, compreendendo seus idiomas pessoais e flexibilizando suas técnicas para atendê-los nas suas diversidades.
Vamos agora expandir a reflexão para as instituições de formação de psicoterapeutas, cuja tarefa principal é a construção do profissional dentro de um referencial teórico, do qual as técnicas são decorrentes. As instituições de formação oferecem também pertinência e filiação.
Especificamente, na formação de psicoterapeutas corporais temos os conteúdos programáticos trabalhados vivencialmente, o que favorece bastante a emergência de conteúdos emocionais. Isto trás uma complexidade quando se compreende o tripé básico de uma formação: psicoterapia-aulas teórico/técnicas-supervisão, especialmente do ponto de vista transferencial, tema que abordei no meu texto sobre supervisão (1995). A transferência pedagógica neste contexto envolve muitos elementos, o psicoterapeuta-aluno, seus professores, seu psicoterapeuta e outros da instituição, seus colegas, a própria instituição, a relação desta instituição com outras e assim por diante. Observarmos os limites e possibilidades de cada relação, tanto do ponto de vista caracterológico, quanto nestas dominâncias que estamos a tratar é muito enriquecedor para trabalhar o fluxo das relações, da aprendizagem e a saúde institucional.
É fundamental evidenciar que ao promover reconhecimento e pertinência, “obter o título e ser membro da instituição”, muitas vezes, pede-se aderência ao modelo, promove-se a repetição (ecoísmo), dificultando ou refreando a criatividade e o diálogo com autores considerados proscritos ao grupo. Na comunidade bioenergética vivemos o período “back to the basics” (“volta às origens), onde Lowen nos convocou a permanecer na repetição e nos rebelamos, baseados nos próprios princípios da Análise Bioenergética, vida é movimento.
Estas questões podem assim ser resumidas:
-Como ser fiel ao mestre e ao mesmo tempo assumir a própria singularidade?
-Como se constituir de maneira a trabalhar de fato justo e junto ao paciente?
Heliane Rodrigues, uma analista institucional, compara uma teoria psicológica a uma caixa de ferramentas: é preciso que sirva. E não para si mesma.
Voltemos ao mito, à cena do encontro entre Eco e Narciso. Este encontro se dá na adolescência, fase da vida em que o desenvolvimento pressiona para se abrir para o outro e se separa da família da infância. Época que inicia uma possibilidade, pois tanto Narciso quanto Eco buscam presença.
Esta passagem no mito (Brandão, 1991), primeiro assinala a esperança, e depois a humilhação-vergonha-depressão-morte de Eco e a seguir o desespero-morte de Narciso, os dois numa evolução para níveis mais patológicos.
Vejamos:
Era verão e Narciso partira para uma caçada com seus companheiros. Eco era uma das apaixonadas pela beleza irresistível de Narciso e o seguia pela floresta.
Acontece que o jovem Narciso tendo-se afastado em demasia dos amigos, começou a chamar por eles:
-Olá, ninguém me escuta?
-Eco responde: escuta...
-Ele pasmo, olha ao redor e nada vendo grita: Vem!
-E ela: vem!...
-Narciso: porque foges?
-Eco: foges...
-Ele conjeturando que tipo de coisa seria, diz: junte-se a mim!
-Eco se pudesse por voz própria teria dito: nada mais me agradaria em tempo ou lugar, disse: a mim... e tomada de um calor, confiante deixou a floresta e esticou-se para abraçar o belo que tanto desejava.
-Ele foge sem se deixar envolver e diz: prefiro morrer antes que tu tires de mim teu prazer
-E ela: teu prazer...
E se vendo assim desprezada, retirou-se para a floresta, escondeu sua cabeça de vergonha por entre folhas e brotos (lembram a foto?) e fechou-se numa imensa solidão. Por fim deixou de se alimentar e definhou até tornar-se pele e ossos, ficando assustadoramente esquálida (os quadros de anorexia e depressão) transformando seus ossos em pó num rochedo. Ela ainda hoje se esconde lá nas montanhas, no entanto seus sons são ouvidos por todos os homens.
Todas as ninfas que foram também desprezadas por Narciso sofrem com a dor de Eco e clamam justiça a Nemesis, para que ele possa sentir o ardente fogo de Cupido e que não consiga desfrutar o que desejar.
E aí temos a famosa cena em que Narciso está deitado à beira do lago, inclinando-se para saciar a sede e ao beber vê seu rosto refletido e se apaixona.
Ele tenta, tenta em vão com seus braços alcançar este que pensa ser outro. Chora e do lago não se afasta, quanto mais chora mais o outro se afasta, se desfaz.
-Por onde foges? E grita em desespero: fica, te imploro!
E senta-se ereto, erguendo seus punhos grita para a floresta sua dor e lamento e num gesto arranca seu casaco e golpeia seu ventre nu, gritando ai de mim!
Deitou sua cabeça extenuada na grama e a morte chegou.
Nesta cena tanto Eco quanto Narciso são imperativos, ela quer uma união com ele, mesmo que ele não decida e ele quer um espelho, alguém que o reflita.
Narciso é filho da violência, não foi refletido, cresceu insensível a todos, prefere a ilusão do outro ao invés de realmente um outro. Na cena ele é seduzido pela cópia fiel das suas palavras e pede que Eco se manifeste.
Ela, que por sua vez dependia dele para se manifestar, sente que se aproxima do seu sonho e aí, ela que era só voz, se faz corpo e aparece quando ele propõe que se unam. Neste momento ela rompe com a repetição e expressa assim seu desejo de intimidade, mas, a pressa em função do fogo que a consome não deixa espaço para a resposta de Narciso. Inflamada de paixão se atira sobre ele, que a rejeita, e então, ferida, humilhada, se retira, mas continua amando e sofrendo.
Eco devolve a Narciso sua própria voz, podemos imaginar que se ele tivesse dito “eu te amo”, ele teria ouvido isto de volta.
A incapacidade de dizer estas palavras identifica um narcisista, que se sustenta no poder. Ele diz: antes morrer que tu tires de mim teu prazer... Ao rejeitar Eco, Narciso rejeita a voz que poderia lhe devolver a seu corpo e sentimentos.
Temos sempre explorado na leitura deste mito seu apaixonamento pela imagem, mas também podemos ver a necessidade de introspecção e reflexão para encontrar seu self verdadeiro. O problema é que isto também requer uma medida boa o bastante. Narciso vive a reflexão patológica.
Após a morte de Narciso todas as ninfas choram e sua irmãs, as ninfas das águas cortam seus cabelos e cobrem seu corpo para prepará-lo para o funeral. Quando retornam, no lugar da grama onde estava seu corpo só havia uma flor de corola amarela rodeada de pétalas brancas. Esta flor se chamou narciso.
Na raiz de narciso temos narkos, de narcose, o que entorpece, enebria. Podemos ver como o símbolo de um processo interrompido destes dois jovens, mas também o movimento presente na morte e transformação. Aliás a mesma flor aparece em outro mito, relacionada ao rapto de Coré, mas esta já é outra história...
A tragédia destes jovens nos esclarece sobre as realidades que abordei anteriormente e abre para tantas outras reflexões sobre temas afeitos à nossa prática de psicoterapeutas corporais. Vejamos algumas:
Na bioenergética reproduziu-se por um bom tempo aquilo que se dizia: no país do Carnaval ser introvertido é uma tragédia! Considerou-se a introversão e a introspecção sob a ótica patológica, como a que Narciso vive, cometendo a desmesura. É fundamental, porém, perceber que a reflexão e introspecção têm um papel fundamental no desenvolvimento, no caso de Narciso, possibilidade de encontrar seu verdadeiro Self, ultrapassar a imagem. Mas, é necessário encontrar a medida boa o bastante para reconhecer-se e não ficar fechado em si e desta maneira construir a capacidade de acolher o estranho dentro e fora de si.
Esta questão nos remete ao olhar e Plinio Montagna (1996) nos lembra que sempre nos vemos às voltas, pessoal e profissionalmente como psicoterapeutas, com a profecia do sábio Tirésias: Narciso, se vir morrerá. Somos convidados a ver, mas também a não ver o que não pode ainda ser descoberto ou que suscita reações adversas até o extremo da agressividade. Vale refletirmos o quão narcisados e embriagados, anestesiados, nós, psicoterapeutas corporais, podemos ficar com o jargão: o corpo não mente.
O narcisista pensa seu corpo como imagem perfeita e controlável, e isto se opõe ao que sabemos, corpo é processo e sempre surpreende. Não podemos esquecer que a vida sempre tem uma dimensão de mistério e aquilo que precisa manter-se escondido.
Com a personagem Eco temos a condenação à repetição, e uma das funções da psicoterapia é exatamente liberar as subjetividades condenadas à repetição. Ao repetir compulsivamente busca-se uma presença onde não teve, para que uma compreensão se faça e o ser se ponha em fluxo.
Em outra passagem no mito, Eco se inflama de paixão por Narciso e se atira sobre ele sem esperar o tempo de sua resposta e se humilha. Como trabalhamos as cargas que mobilizamos nos processos dos nossos pacientes, neles e em nós? Como escolhemos o tempo de uma intervenção? Como ajudamos nossos pacientes, nesta era da hipervelocidade, a viver um tempo ancorado na sua corporeidade?
Ela ecoa, e aqui temos o preciosíssimo tema da ressonância, esta habilidade fundamental para o psicoterapeuta corporal. Eco nos leva a refletir a que devemos ecoar/ressoar, a tudo? Como elegemos a que ecoar? Como sustentar a distância boa o bastante para se manter discriminado e assim viver o paradoxo distância que aproxima? Lembrem que Eco é ouvido lá nas montanhas...
E, imbuídos da reflexão do que ecoamos, é fundamental nos perguntarmos dia-a-dia como exercemos nossa função psicoterapeutas. Somos reprodutores do modo de existir imperativo da nossa cultura narcisista? Conformamos nossos pacientes ao consuma, nunca envelheça, chegue lá a qualquer custo...ou resistimos (na dupla acepção: resistir contra e re-existir) e ecoamos as diferenças?
Patricia Berry (1982) faz uma análise que inclui a beleza de Eco, reconhecendo que ela não origina, só repete, mas que desta forma tem um importante papel para que algo se origine. Ao nos ouvir através do outro, temos a chance de nos reconhecer em novos aspectos. Ecoar é dar morada ao outro, é devolver o outro a si, nos diz Gilberto Safra.
Eco nos deixa um grande desafio: ouvir aquilo que pede para não ser silenciado nos diferentes espaços que somos chamados a intervir, assim fertilizando os espaços vazios, liberando o que precisa ser des-coberto, trabalhando a favor da Vida e da multiplicidade.
Fica o convite a continuarmos esta história, em busca do encontro, reunindo em cada um de nós Narciso e Eco, ajudando a inventar um mundo e relações em que prevaleçam hospitalidade, respeito, cuidado, contato, ternura, compaixão e solidariedade. Assim fundamos o humano, assim realizamos nossa essência. E na essência somos amor!
Referências:
BALENCIAGA, I. Co-dependencia y literatura – a co-dependencia en la antiguedad clasica. www.telefonica.net/web2/ijpm/red-2000.pdf, consulta em 09/01/2008
BERRY, P. Echo´s subtle body, item VII Echo´s passion. Spring Publications, Inc, 1982
BRANDÃO, J. S. Miltologia grega, vol. II, item IV. Ed. Vozes, 1991
BYINGTON, C. A. A construção amorosa do saber – O fundamento e a finalidade da Pedagogia Simbólica Junguiana. Ed ReligarE, 2003
Pedagogia Simbólica, Curso na SBPA, 2007
LOWEN, A. Horror: a face da irrealidade, palestra,1972, publicação do IIBA
Narcisismo: negação do verdadeiro Self. Ed. Cultrix, 1983.
MONTAGNA, P. Narcisismo: considerações atuais. In Junguiana, revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica nº 14, 1996
MONTELLANO, R.P. Narcisismo: considerações atuais. In Junguiana, Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica nº14,1996
A dimensão arquetípica do narcisismo, Curso na SBPA, 2000
Transtornos de la personalidad narcisista. In Psicopatologia psicodinâmica simbólico- arquetípica 1, Universidad Católica, Prensa Médica latinoamericana. Montevideo, 2006
REVOREDO, L. Ecoísmo e Narcisismo numa visão bioenergética, texto escrito em janeiro de 2008, versão para os Anais do XIII Encontro Paranaense de Psicoterapias Corporais, 2008. Site www.centroreichiano.com.br
Supervisão: a questão da forma. Texto, 1995
Texto apresentado no XIII Encontro de Psicoterapias Corporais, Curitiba/Paraná, maio de 2008.
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