Prisão Invisível
- Luis Felipe Freire
- 2 de mai. de 2016
- 5 min de leitura

Acolher alguém não é simples, proporcionar um ambiente onde uma pessoa se sinta respeitada por quem ela é, contém detalhes importantes que nem sempre são percebidos facilmente. A terapia deve ser um ambiente de acolhimento, no entanto, a relação entre a teoria psicológica e a prática clínica pode acabar tornando o ambiente ameaçador para quem procura o tratamento. Rotular esta sensação de ameaça como “resistência do paciente” é demasiado simples para um profissional armado de conceitos teóricos que são estranhos aos leigos que procuram o consultório. O profissional detém a possibilidade de interpretar o sentido das ações do paciente, o que pode tornar a relação entre os dois assimétrica e uma disputa de poder sobre quem possui a “verdade”. A teoria psicológica é sempre baseada em uma concepção de ser humano e uma descrição do seu modo de se relacionar com a realidade, que despertam emoções que podem ser aceitas, ou não, pela pessoa que escolhe buscar um psicólogo, o que permite aos profissionais elaborar, de forma implícita ou explícita, um conceito de saúde fundamentado na teoria e no método derivado dela, independente da teoria escolhida. O estudo e a reflexão podem acabar colocando o psicólogo em uma posição de saber, que o distancia do acolhimento que ele busca proporcionar, porque faz com que ele elabore um desejo para compreender o que o paciente “precisa”.
Neste pequeno detalhe está um problema fundamental, porque a idéia que as pessoas “precisam de algo” para se sentirem, ou até, serem pessoas melhores, não possui suas raízes em um ambiente que é acolhedor das particularidades e expressões individuais. Esta idéia de que a “pessoa necessita” aprender alguma coisa é na verdade própria dos ambientes correcionais, ou seja, as prisões, que são instituições que buscam “recuperar” e “curar” um delinquente. Quando a teoria direciona a relação entre o psicólogo e seu paciente, retirando a espontaneidade e a escolha livre que ele deve exercer sobre seus atos, sejam eles racionais ou irracionais, é a vontade do paciente que precisa ser “corrigida” porque ela é “inadequada” e “razão” do seu sofrimento. Sutilmente, o psicólogo deixa de proporcionar acolhimento, e através de suas perguntas e reações que surgem a partir do relato do paciente, passa a se comportar como um juiz informal que não mais aceita a espontaneidade do relato e das manifestações da pessoa que o encontra, estreitando as possibilidades de aceitação e assimilação do que existe de mais próprio e singular na pessoa que busca ser compreendida por quem ela de fato é. Isto faz com que ela incorpore a idéia que ela “precisa mudar”, retirando a espontaneidade que é uma fonte vital, tornando a “mudança” uma obrigação ao invés de uma escolha que pode proporcionar um aprendizado que para ela é fonte de satisfação.
Ao crescer nela a percepção que ela não pode ser espontânea, também aumenta a sensação de aprisionamento, restringindo suas possibilidades que não podem mais ser expressas antes que elas sejam conhecidas, invertendo a lógica da vida, onde a expressão espontânea pode proporcionar um aprendizado rico de significado. Ela passa a observar esta espontaneidade como uma ameaça que não se encaixa às suas expectativas, e também não se encaixam nas expectativas do psicólogo, detentor do saber sobre o que é mais “saudável”, capaz de distinguir qualitativamente o que seria uma “escolha consciente” de outra que apenas irá aprofundar o sofrimento que ela busca evitar na terapia. O sofrimento é importante na vida de todas as pessoas, e ter medo de permitir que o paciente o experimente é uma forma nociva de desrespeitar as escolhas individuais, que coloca o profissional em uma posição que considera privilegiada porque é capaz de observar com maior clareza que a pessoa as consequências de seus atos e escolhas, ferindo gravemente o princípio de liberdade que deve direcionar a terapia.
Na psicologia corporal isto é especialmente perigoso, porque trabalhamos com exercícios expressivos que devem proporcionar o fluxo emocional espontâneo, permitindo uma expressão vital coerente com os desejos particulares de nossos pacientes, no entanto, se a escolha do exercício não for realizada a partir da manifestação espontânea que ocorre durante o atendimento, e o profissional se apegar a teoria, e compreender que ele deve “saber” o que o paciente “precisa para se curar”, o exercício perde seu significado, deixando de ser uma oportunidade de auto-conhecimento para se tornar um suplício por não conseguir o fluxo emocional “saudável”. Neste sentido a compreensão do saudável que se confunde com o conceito de normalidade, ou seja, da repetição comum e estatisticamente esperada, funciona como uma prisão para a intensidade e a expressão particular de cada ser humano, buscando padronizar o comportamento diante do que é socialmente aceito, deslocando a percepção do saudável para fora, para o outro, ao invés de a percepção individual do ser humano que vive e escolhe por si mesmo o que quer, ou não, fazer com o seu tempo de vida.
É neste sentido, que mesmo diante do desenvolvimento da teoria e da prática psicológica, que o profissional deve sempre se colocar em uma posição de não-saber, porque precisa estar sempre presente o fato dele não saber nada sobre o que aquele paciente específico precisa, apenas o próprio paciente é capaz de construir esta percepção e realizar suas escolhas de acordo com sua forma de estar no mundo. Teoria e prática devem auxiliar o profissional no que ele pode oferecer para seu paciente expressar o que ele mesmo já traz consigo, o que ele precisa de “novo” deve surgir dele mesmo, não de uma teoria previamente concebida, porque esta é impessoal por definição, enquanto a terapia é um local para que ele possa aprender com sua própria individualidade. Neste contexto, é primordial que a interpretação do profissional seja objetiva, descrevendo o que ele percebe na expressão presente do paciente, proporcionando que ele adquira mais autoconsciência sobre seus atos. Isto permitirá que ele desenvolva mais autonomia, mas esta nunca pode ser ferida ou diminuída através de uma interpretação do que ele “precisa”, “poderia” ou “deveria” fazer. Estas colocações desrespeitam a individualidade e deslocam a sensação de capacidade para uma percepção de fraqueza e incapacidade que cria uma relação de dependência entre um paciente que “precisa” da ajuda do psicólogo para encaminhar sua vida, ao invés de alguém que escolhe estar ali. Caso isto não seja compreendido pelo profissional, no primeiro momento que o paciente se sentir capaz, ou potente, ele irá literalmente fugir da terapia numa busca para se preservar, que frequentemente é interpretada como uma “incapacidade para lidar com os conteúdos da terapia” por um profissional que não foi capaz de lidar com os conteúdos do seu paciente, se escondendo atrás de um pretenso saber de alguém que consegue ver algo que o paciente não vê. Na verdade, o cego da relação foi o profissional que viu apenas o que ele escolheu, aprisionando as manifestações que surgiram de uma individualidade que ele não acolheu.
É preciso reforçar a terapia como um espaço para o fortalecimento da liberdade, onde o psicólogo busca compreender a experiência de quem o procura e retribui oferecendo a possibilidade dele expressar sentimentos em um espaço onde seu movimento é livre e estimulado a surgir a partir dos próprios desejos e vontades, é neste momento que a psicoterapia corporal pode contribuir estimulando a força vital com um ambiente seguro que dê continuidade aos pensamentos que estão bloqueados em tensões e resistências que devem ser percebidas e compreendidas pelo paciente sem que ele concorra com psicólogo para escolher o que ele compreende ser o mais fundamental de ser vivido, desfazendo os medos que bloqueiam sua expressividade.
Sobre o autor: Psicólogo, formado pela PUC/SP, CBT pelo Instituto Internacional de Análise Bioenergética de São Paulo. Trabalho com psicologia clínica. Músico amador. Poeta amador. Pintor com habilidades infantis. Ser humano ingênuo. Amador na arte de viver. E-mail: lfreire@outlook.com
Fonte: http://bioenergeticabrasil.blogspot.com.br/2016/04/prisao-invisivel.html
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